25 de janeiro de 2006

São Paulo, 452

Esse post é acima de tudo uma homenagem a essa bela cidade. Mas não uma homenagem tradicional, como aquelas listas que falam os lugares mais bonitos da cidade, e blá blá blá. Essa é diferente, porque lista de melhores é coisa de carioca. Lista de paulista tem que enaltecer o amor, o orgulho, o ódio.
Ah sim, os créditos dessa lista são da Revista da Folha do dia 22 de janeiro de 2006.

O MELHOR LUGAR Para alcançar a "iluminação"
Foi exatamente debaixo de uma figueira igual a esta que Buda atingiu, aos 35 anos, a "iluminação". Localizada no parque da Luz, tem mais de 100 anos e, para abraçar seu tronco, são necessárias 12 pessoas. A espécie é originária da Índia e veio parar no parque graças a Dom João 6º, que em 1798 decidiu criar um ortobotânico com espécies nativas e estrangeiras para extração de madeira. Em ano eleitoral, ótima dica para candidatos a candidatos.

Para maldizer a existência de motoboys
Eles estão por toda parte, mas parecem se multiplicar como "gremlins" na rua da Consolação. O farol fecha e, em poucos segundos, os três que ocupavam a dianteira da pista já são seis, depois 12 e assim sucessivamente, em progressão geométrica. Mudar de pista é uma atitude de alto risco. Nunca se sabe quando nem de onde eles podem surgir. E se você "fecha" sem querer apenas um, compra briga com todos.

Para abençoar a APARIÇÃO de UM taxista
No Jardim Ângela, Shakespeare mudaria o "meu reino por um cavalo" para "meu reino por um táxi". Ali, eles são tão raros quanto diamantes. Por dois motivos: é uma viagem longa (mais de uma hora desde a região central), cara (em torno de R$ 60, só a ida) e, no jargão profissional, "sem volta": retorna-se vazio ou com falsos passageiros, que entram em dupla para fazer assaltos.

Para praguejar contra marronzinhos
Escolha o cruzamento das avenidas Rebouças e Brasil. Sempre há pelo menos um, seja para mandar parar, quando o farol está verde, ou andar, quando o vermelho diz o contrário. Você obedece o farol -está condicionado- e leva multa (ou passa o dia injuriado, achando que levou). Justiça seja feita, no trânsito paulistano é difícil não embirrar com os marronzinhos: por percepção seletiva, o motorista só os vê quando o tráfego está parado (e ele irritado) ou depois de alguma barbeiragem proibida (e ele multado).

Para tomar bolo ou chá de cadeira
As escadarias do prédio da Gazeta, na Paulista, são um clássico: dá para esperar sentado, sem dar pinta de quem levou "bolo" e há sempre o que observar enquanto o tempo não passa: a zoeira dos adolescentes do Objetivo, os atores amadores que se apresentam ali na frente, as greves que atrapalham o trânsito. Se não estiver acontecendo nada, é possível comprar um jornal na banca da frente ou um sorvete de casquinha ali do lado. E esperar.

Para FALAR MAL DE Oscar Niemeyer
Dizem que o arquiteto tem alguma coisa contra o verde -e o Memorial da América Latina parece prova inconteste. É um mar de concreto que, em dias escaldantes, se torna mais inóspito que o Saara. Oscar Niemeyer já argumentou que o espaço livre, sem vegetação, valoriza a arquitetura (é mais ou menos como preferir ficar careca para valorizar o design da cabeça). Ainda bem que ele não pensou nisso quando projetou o parque Ibirapuera.

Para "ver" a poluição
Lugares poluídos não faltam, mas nada mais simbólico do que uma avenida chamada Bandeirantes para ficar literalmente cara a cara com um "patrimônio" da cidade. Escolha a faixa central e fique no banco do passageiro: os caminhões jogam aquela fumaça negra diretamente no seu nariz, você respira fundo e se sente um verdadeiro Anhanguera. Das 23 estações de controle de ar da Cetesb, a de Congonhas (que cobre Bandeirantes e Washington Luís) era a que mais estourava os limites de emissão de monóxido de carbono, produzido pelos veículos. Isso melhorou. Desde 2003, segundo a Cetesb, nenhuma estação ultrapassa mais esse limite. Mas fique tranqüilo, a sensação intoxicante continua a mesma.

Para fingir que está em Paris
Às vezes, a mais parte mais interessante de uma apresentação no Teatro Municipal é o intervalo. Você pede uma taça de prosecco, passeia pelo salão nobre e, com ar existencialista, vai ao terraço. Não vai ver exatamente a Avenue de Opera, mas a vista do Viaduto do Chá é bem bonita. Se estiver frio, melhor: enrole-se em um cachecol usado e diga que comprou no mercado de pulgas.

Para se perder
Caia na conversa daquela "dica imperdível": um amigo falou de uma pizzaria incrível no Brás. E você vai. Mas pega o viaduto errado no parque Dom Pedro e vai parar na Mooca. Pergunta às pessoas no caminho, e ninguém conhece nada. Pede o guia emprestado a um taxista, mas parece que todas as ruas são contramão. Já desistindo, cai numa rua escura e, sem querer, encontra a pizzaria. Nessa altura, a fome é tão grande que você entende por que a pizza é tão incrível assim.

Para soltar a voz
A acústica não é tão boa quanto o boxe do banheiro, mas a motivação para soltar a voz (ou necessidade) é incomparável quando se está no túnel Anhangabaú, principalmente com trânsito intenso. Imagine o Bono Vox cantando para 100 mil fanáticos no Morumbi sem o retorno (aquele aparelhinho para ouvir a própria voz): só ouve o barulho. Tentar conversar no carro, com as janelas abertas, é o mesmo que trocar palavras em um show da banda Motorhead.

Para marcar encontros pela internet
O Conjunto Nacional tem tudo o que você precisa. É fácil chegar, de metrô, de ônibus ou de carro. Tem um café, para iniciar a conversa; uma livraria, para descobrir gostos em comum; um cinema, caso a história evolua para algo mais romântico; restaurantes, se precisar espichar o papo; e uma galeria, para uma digestão culturete. E tem solução para qualquer desfecho: uma farmácia, para comprar camisinha; um hotel com preço honesto na mesma calçada; e policiamento, caso seu amigo virtual se transforme em perigo real. Melhor de tudo: também permite passar incógnito, se um dos dois mentiu deslavadamente sobre a triste figura.

Para exorcizar seus demônios
Dizem que a melhor forma de se proteger contra assaltos na praça da Sé é correr para dentro da catedral. Em princípio, nenhum cristão seria capaz de cometer tal ato dentro da casa de Deus. Mesmo que não funcione -caso o larápio seja ateu ou um neoliberal extremado-, entrar na igreja lava a alma de qualquer pecador. Desde a reforma, em 2002, ela está impecável.

Para PEGAR UM BRONZE
Parque Ibirapuera. A praça da Paz, onde acontecem os shows gratuitos, é uma vasta área verde sem nenhuma árvore que atrapalhe a visão do palco. Portanto, sem nenhuma sombra para se proteger do sol. Na hora do entusiasmo, você nem se lembra disso. Depois, nunca mais esquece. A marca da camiseta o persegue por meses a fio.

Para xingar o juiz
No pequeno e aconchegante estádio do Juventus, na Mooca, dá para escutar até as instruções do técnico. Primeiro, porque o torcedor fica muito perto do gramado; segundo, porque a torcida juventina muitas vezes não chega a mil pessoas.

Para pensar que São Paulo tem mar
Faróis servem para orientar navegantes sobre a entrada de portos ou sinalizar áreas perigosas, como a presença de recifes. Qual seria a função de um farol de navegação em plena São Paulo? O farol do Jaguaré, na rua Salatiel de Campos, tem 23 metros e foi erguido na década de 1930 pelo primo de Santos Dumont, o urbanista Henrique Dumont Villares, com o objetivo de orientar embarcações no rio Pinheiros. Seu relógio não funciona, mas o farol está aberto à visitação pública.

Para ter o carro levado pela enxurrada
Não há seguradora capaz de contestar o sinistro. Ao sentir os primeiros pingos (espere aqueles grandes e pesados), compre pipoca e corra para a região de Aricanduva, mais precisamente para a rua Iemanjá -quer lugar mais apropriado para homenagear a rainha das águas? A água sobe com uma velocidade impressionante, e logo você flutuará como um barco: é hora de subir para o teto e clamar por socorro, já que a correnteza causada pelo transbordamento do Aricanduva costuma arrastar tudo. As bocas-de-lobo, que deveriam levar a água das ruas para o Aricanduva, estão abaixo da borda do córrego e fazem o inverso. Esperto.

Local público para transar perigosamente
Lembre-se, é atentado ao pudor, mas, nesse aspecto, o parque Trianon oferece o pacote completo. É proibido entrar à noite, portanto mais excitante. É preciso pular a grade, portanto mais aventureiro. Na natureza exuberante, o casal pode encarnar Adão e Eva e libertar seus instintos primitivos. Ah, e ainda tem as lixeiras, para jogar fora a camisinha. Sem contar o risco de ser assaltado.

Para DESCOBRIR que o tempo VOA
Aos 18, você preferia descer/subir as ladeiras de Perdizes a pé (santa vitalidade, Batman!) e não de carro: com sua parca experiência ao volante, engatar a primeira e "segurar" o carro o fazia suar frio. Hoje, tudo mudou: subir a pé, seu coração não agüenta; descer é arrumar confusão com as próprias pernas.

Para tomar banho de cachoeira
O melhor lugar é debaixo do elevado Costa e Silva em dia de chuva. Dependendo do lugar, a cachoeira pode lembrar um "Véu de Noiva", em que a água se distribui como renda, ou "Niagara Falls", um jato assustador de toneladas de líquido. Leve em conta o elemento surpresa, pois sua fonte é imprecisa.

Para descobrir onde estão os homens QUE FALTAM
Mulheres vivem reclamando da falta de rapazes disponíveis e se perguntando aonde vão? Estão todos no mesmo lugar: nos bares e casas noturnas da rua da Consolação, entre as alamedas Itu e Tietê. A quantidade (e, quase sempre, a qualidade) é de encher os olhos. O detalhe, que aqui faz toda a diferença, é que a recíproca não é verdadeira. Eles não estão sentindo falta das mulheres. Ali é território gay.

Para sentir o cheiro do campo
Saudade do cheiro da fazenda? Graças à cavalaria da Polícia Militar, ele é garantido na avenida Tiradentes, na área central. Diferentemente dos cachorros, cujos donos são obrigados por lei a recolher seus dejetos, os cavalos da PM vão deixando suas necessidades fisiológicas (bem maiores, aliás) pelas ruas. É campo, sim -minado.

Para se sentir no Rio
Qual a diferença entre andar de montanha-russa no Playcenter e pegar um ônibus no balneário carioca? Bem, na montanha-russa, o carro subir e despencar faz parte da brincadeira e costuma acabar bem. Já nos coletivos cariocas, o chão é o limite e os desavisados freqüentemente beijam a lona. E a semelhança? A adrenalina. Nas curvas, a impressão é a de que o carro (em ambos) vai ficar em duas rodas -e não adianta segurar nas barras de ferro e fechar os olhos ou você vai perder a única coisa que faz o ônibus carioca levar vantagem: a paisagem das praias é muuuiiito melhor que a vista da marginal Tietê.

Melhor rua fantasma de madrugada
Há mais de 400 anos, era o caminho que ligava o colégio dos Jesuítas ao mosteiro São Bento; chamava-se então rua do Rosário. Depois da República, o nome mudou para 15 de Novembro. Hoje, a colméia humana do dia vira cenário de cidade abandonada à noite. Na dúvida, respeite o passado e leve um terço: o lugar é tão deserto que você se assusta com a própria sombra e o eco dos passos.

Para ficar invisível
Faça como os bichos, camufle-se na paisagem. Um bom lugar para isso é misturar-se à massa compacta que atravessa o cruzamento da Paulista com a Brigadeiro Luiz Antônio, na hora do almoço ou do rush, quando o farol de pedestres abre. É ali que os batedores de carteira aproveitam o truque da invisibilidade para incrementar o faturamento.

Para ter um ataque de pânico
Poucas coisas são mais claustrofóbicas do que 1 milhão de pessoas espremidas na 25 de Março -é o equivalente ao dobro da população de Luxemburgo (443 mil) em uma rua. Mas sossegue, isso só acontece em datas comerciais importantes: o movimento normal é só de 500 mil pessoas -quase o dobro da população de Barbados (275 mil).

Para achar frutas de plástico
Mais um ponto para a 25 de Março: é o melhor lugar para comprar não apenas frutas de plástico, mas também barbeador elétrico falsificado, remédio natural para reumatismo, violão chinês, gongo, máscara do Batman, bolinhas de isopor, anão de jardim, gravata do Mickey, camisa da Portuguesa... Tudo o que você não precisa você encontra lá.

Para namorar na praça como no interior
A praça da Matriz, na Freguesia do Ó, tem tudo: a igrejinha, bancos, jardim, pipoqueiro e botequim. Com 144 mil habitantes, a Freguesia ainda conserva certo ar de interior paulista, não à toa. Um dos bairros mais antigos de São Paulo, era na então "distante" Freguesia que os bandeirantes paravam para abastecer antes de enfrentar as longas viagens pelo interior.

Para exibicionistas/ voyeuristas
Sem dúvida, o Minhocão, e em duas vias. De fora para dentro, quem mora nos andares mais baixos dos prédios vira personagem de "reality show" diurno: de carro, no trânsito parado ou perambulando no viaduto aos domingos, é difícil não esticar os olhos para uma das centenas de janelas, onde sempre tem alguém em ação. De dentro para fora, os shows são noturnos e, portanto, mais "hardcore": com o elevado fechado, moradores de rua, notívagos e os praticantes da mais velha profissão do mundo mostram a vida como ela é.

Para se sentir na polinésia francesa
Não é preciso atravessar o Pacífico Sul. Essa pequena e ensolarada ilha deserta fica em plena represa de Guarapiranga, a 2 km da avenida Robert Kennedy, em Interlagos, zona sul. O lugar, originalmente chamado de ilha das Formigas, por causa de suas minúsculas moradoras autóctones, tem duas árvores e um farol, nada mais. Paul Gauguin estranharia a falta de belas nativas, mas não poderia reclamar da praticidade: em 15 minutos de barco, ele estaria em São Paulo. Só não se sabe para quê.

Para despedidas amorosas
Separação tem que ser triste, e a rodoviária Tietê é o cenário perfeito. O ritual do adeus é longo: você pode pegar o metrô com a pessoa amada, carregar suas malas, esperar na plataforma e dar tchauzinho pela janela; com sorte, ele/ela se senta do lado direito, prolongando o adeus até que o ônibus faça a curva e deixe de vez o terminal. Melhor que em "Casablanca" (tem até aquela névoa da cena final, a diferença é que aqui cheira a diesel).

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